“A Palavra” por Pedro Sá Valentim
Como qualquer reflexão séria sobre a fé, Ordet é um filme sobre a dúvida. Um filme sobre cenas da dúvida privada. E por isso Ordet é um filme de câmara — um filme doméstico e de interiores (aliás: quanto ao carácter formal Paul Schrader chegou a inscrevê-lo, como de resto sucede com outras obras de Dreyer, na tradição das Kammerspiele, isto é: das peças de câmara dedicadas a explorar um “intimate family drama”), um filme íntimo, portanto, e por isso também sobre o circuito fechado da intimidade e da partilha dialogada das alegrias, dos sonhos, dos anseios, dos medos, das dúvidas, das tragédias, e de todas as questões que o animam (e que são as mesmas que nos animam e sobressaltam a vida), daí que seja definitivamente um filme sobre o diálogo, melhor: sobre a tentativa tantas vezes fracassada de dialogar, quer uns com os outros quer connosco e com aquilo em que acreditamos.
Mas nunca é como um conto moral que Dreyer aborda ou trata esta história, e muito menos é dessa forma que a conduz. O modo grave e austero como é composta e enquadrada, o ritmo lento com que se acende e vai ardendo e assim progride e o brilho ao mesmo tempo radioso e quase florescente que emana de tudo o que vemos plasmado diante de nós (atente-se à fotografia de Henning Bendtsen, que tratou de iluminar cada personagem em separado e a uma luz diferente das demais), combinado com a impressão de transparência, de união e de vínculo que perpassa da ordem daquele particular universo, evoca antes uma celebração do mundo como uma obra da graça e do mistério divinos e afasta qualquer veleidade de irrisão, de crítica ou até mesmo de exploração duma ironia vulgar ou óbvia, aliás: se há algo que aqui seja denunciado é justamente a nossa transitoriedade e perpétua contradição.
Dreyer não julga nada nem ninguém, e muito menos condena o que quer que seja, o que no entanto não impede que Ordet seja em última estância um filme sobre redenção, sobre o poder redentor do amor entre os homens. E ainda sobre a luz que emana daqueles que acreditam e da relação plástica destes com o impossível.