“História(s) do Cinema” por Pedro Sá Valentim
Godard apresenta-se assim (e faz-se representar) como o último dos mestres artesãos, uma espécie de guardião do templo do cinema, a quem lhe tivesse sido confiada a sagrada tarefa de resgatar tanto a história daquela que deveria ter sido a gloriosa missão do cinema (a de que “o cinema poderia ter sido tudo”) como depois a do seu glorioso falhanço e que precisamente impediu que aquela não se tivesse cumprido. E ainda que o programa a que Godard se propõe seja por este motivo de proporções épicas, larger than life, e, a condizer, edificado como um autêntico monumento cerebral (estamos dentro da cabeça de Godard, é para lá que ele nos leva, aliás: o facto de ele fazer assentar no dispositivo da montagem a trave mestra deste seu edifício cinematográfico [e Godard faz-se representar precisamente assim, como o génio criador que ordena o universo: sentado quer à máquina de escrever quer à mesa de montagem, igual a si próprio, um demiurgo de charuto no canto da boca] reitera mais uma vez o facto de, para ele, um ensaio sobre o cinema [que estas Histoire(s) du Cinéma claramente pretendem ser] será obrigatoriamente um ensaio sobre a montagem, uma vez que para Godard o cinema só acontece pela montagem, só pelo exercício da montagem é que lhe é possível urdir esta tapeçaria impossível, em que faz suceder em torrente as múltiplas referências, alusões e citações que tantas vezes sobrepõe [naqueles magníficos fundidos encadeados] e que vão desde a óbvia cinefilia à fotografia, à música, à literatura, à história da arte, à história universal e, claro, à sua história pessoal pública e privada), e ainda que, dizia, o programa a que Godard se propõe seja, por todos estes motivos e mais alguns, de proporções épicas, de esboço teórico grandiloquente, é também uma digressão íntima, uma revisitação à sua memória privada, por vezes mesmo em tom confessional, um ensaio sobre uma desilusão, sobre uma traição (um amor traído), sobre uma esperança que foi frustrada, sobre um falhanço, em suma: um ensaio sobre uma paixão desmedida e ainda sobre a forma admirável como com tudo isto, toda esta disparidade (literalmente, com a ordenação e colagem de todos estes pedaços, com a sua montagem) se faz um poema de amor único.