Curar e Reparar / “Healing and Repairing”
A bienal de arte contemporânea de Coimbra Anozero iniciou-se, em 2015, com Mallarmé no seu subtexto. Um lance de dados foi o início de um processo de reequacionar a cidade e a arte na cidade, a sua ligação local e a possibilidade de inscrição num território mais vasto.
Para 2017, num mundo que reclama sistematicamente ser sarado das feridas que permanentemente abre, a possibilidade de pensar em questões que se dirigem claramente para a máquina avariada do mundo, como para a fragilidade do corpo, a incerteza da economia, a necessidade de permanente compensação, surge com uma urgência até agora quase inaudita.
Reparar é uma palavra de muitas significações: tanto quer dizer acautelar como compensar, arranjar como ver. Simbolicamente possui uma conotação jurídica, portanto social. E, simultaneamente, uma vertente pessoal, como um restauro; ou mesmo uma vertente urbana, social e coletivamente ativa.
É deste mundo doente, como disse Tony Judt, que é necessário tratar. Curar.
E a arte não é, certamente, o melhor processo de cura e reparação, porque se situa no campo da ficção, do projeto de reparação e cura. No entanto, numa altura em que os processos artísticos parecem viver tão fascinados com a nostalgia de uma radicalidade perdida e que, portanto, precisa de ser performatizada recorrente e repetitivamente, talvez encenar a cura, expor a reparação, a sutura, a costura que une, corresponda a uma necessidade do nosso tempo.
Não se trata, portanto, de louvar a piedade da cura, mas de reclamar a necessidade de um pensamento curativo, hospitaleiro. De tentar encontrar lugares que pertencem tanto à esfera do indivíduo como à dimensão coletiva, à política como à economia, à pequena história das pequenas comunidades como às grandes necessidades de recuperação das cidades, para encontrar situações simbólicas que reinventam a poética da cura, a brutalidade da compensação, a justiça da reparação, contra a radicalidade e a sua moralidade, o seu puritanismo.
Delfim Sardo, curador-geral do Anozero’17
Dezembro 2015